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Ver ou não ver? Eis a questão

  • IKIGAI - Equilíbrio Digital
  • 29 de set.
  • 6 min de leitura

Guia prático para estar presente sem sentimento de culpa

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Ato I, Cena I

Espaço: Um concerto, um casamento, um batismo, uma viagem;

Material: Máquina fotográfica e um rolo de 36 fotografias;

Ação:  O momento chega e, se não estivermos distraídos com o noivo a beijar a noiva, batemos uma chapa. No concerto nem nos deixam entrar com a máquina fotográfica, na viagem tiramos uma fotografia ao Cristo-Rei e outra à Torre Eiffel; Na igreja tiramos uma foto à agua a cair em cima da testa da criancinha e outra com a família toda à porta da igreja. No final metemos o rolo a revelar e depois aproveitamos as 3 ou 4 fotografias que não ficaram tremidas. São as que vão para o álbum para mais tarde recordar.


Ato II, Cena I

Espaço: Um concerto, um casamento, um batismo, uma viagem;

Material: Smartphone e/ou tablet;

Ação: Quando o momento chega há muito que o telefone está em riste, a captar tudo o que se mexe. Soam os acordes da primeira música e ergue-se uma floresta de ecrãs. Regressamos a casa com uma mão cheia de clips tremidos e 360 fotos do mesmo ângulo às quais nunca mais vamos regressar. E a lembrança do que vivemos? A maior parte das vezes fica mais fina, lembramo-nos melhor do ecrã do que do palco.

 

Este texto não é um manifesto ludita anti-tecnologia. É um convite a usar a câmara com intenção de modo que o registo não absorva a experiência.

Porque filmamos/fotografamos tanto? Existem motivos legítimos para que isso aconteça. O primeiro prende-se com a memória: receamos que, sem o registo, o momento “desapareça”. Esta sensação já está documentada – quando sabemos que a informação ficará “guardada” noutro sítio tendemos a codificá-la menos no cérebro (Sparrow, Liu, & Wegner, 2011). O segundo motivo é de carácter social: a partilha valida e reforça a pertença, os likes atuam como reforço social com efeitos mensuráveis em jovens e adultos (Sherman, Payton, Hernandez, Greenfield, & Dapretto, 2016). A tudo isto soma-se o já conhecido FOMO (Fear of Missing Out) – o receio de ficar de fora daquilo que “todos” parecem estar a viver – que se associa a padrões emocionais e comportamento específicos (Przybylski, Murayama, DeHaan, & Gladwell, 2013). E há ainda a também já conhecida pressão social: quando toda a gente levanta o telefone custa mais resistir.

O problema é que o ato de registar cobra-se de atenção. Operar a câmara, escolher ângulos, ajustar o zoom e o som, decidir se registamos em foto ou vídeo, etc, cada micro decisão disputa recursos cognitivos com o que está a acontecer à nossa frente. Uma investigação feita sobre media multitasking mostra que alternar entre estímulos e tarefas está associado a uma maior propensão para a distração e ao controlo cognitivo mais frágil (Ophir, Nass, & Wagner, 2009). Em termos de memória há ainda outro efeito relevante: fotografar tudo de forma sistemática pode prejudicar a recordação do que foi fotografado – é o chamado photo-taking impairment (Henkel, 2014). Por outro lado, este efeito não é linear nem inevitável: quando fotografamos com intenção – escolhendo os momentos específicos em vez do registo automático – a própria experiência pode tornar-se mais envolvente (Diehl, Zauberman, & Barasch, 2016). Ou seja, não existe uma dicotomia entre “registar é mau” versus “registar é bom”; a diferença reside no como, quando e porquê que registamos.

No contexto português, as recomendações para adultos sublinham a ideia de equilíbrio. A Ordem dos Psicólogos Portugueses (OPP) lembra que, mais do que contar os minutos passados a olhar para o ecrã importa perceber os impactos no sono, no bem-estar, nas relações e na produtividade diária (Ordem dos Psicólogos Portugueses, 2024).

Durante a pandemia da COVID 19, uma investigação realizada com amostras nacionais associou a dependência online a pior qualidade de sono e a fatores relacionais. (Borges, Patrão, Leal, & Costa, 2022). E, embora muitos relatórios incidam sobre crianças e jovens, como o EU Kids Online (Ponte & Batista, 2019), várias recomendações de uso informado — clarificar intenções, definir limites, reconhecer sinais de uso problemático — são facilmente adaptáveis ao quotidiano dos adultos. Guias do Centro Internet Segura organizam essas práticas em passos concretos e acessíveis (Centro Internet Segura, 2019, 2022).

Além do que já foi discutido existem ainda fronteiras éticas e legais que raramente são mencionadas. Publicar imagens de outras pessoas – sobretudo crianças – exige uma consideração sobre a privacidade e o consentimento informado, de acordo com as orientações da CNPD (Comissão Nacional de Proteção de Dados, s.d.). No plano jurídico, a Lei n.º 58/2019 executa o RGPD em Portugal e estabelece critérios para o tratamento de dados pessoais, incluindo imagens, variando consoante o contexto (pessoal, profissional, comercial). Isto é: mesmo que possa filmar num espaço público, isso não significa que se deva publicar livremente tudo o que se capta — perguntar, contextualizar e, quando for caso disso, evitar identificar pessoas é a regra de ouro.

Como podemos traduzir tudo isto em decisões práticas? Uma estratégia simples é o pacto 10/90: dedicar cerca de 10% do tempo do evento a registar e 90% a viver. Escolha de antemão um “momento de assinatura” — o refrão da sua música favorita, o brinde, o golo — e grave 30–60 segundos. Depois, guarde o telefone fisicamente no bolso ou na mala. Esta “fricção” ajuda a quebrar o ciclo do “já agora mais um story”. Defina intenções explícitas antes de sair de casa: “quero um clip de 45 segundos e três fotos, e só”; a clareza do propósito tende a aumentar o envolvimento e o prazer (Diehl et al., 2016). Durante o evento, use uma âncora sensorial para contrariar o enviesamento visual da câmara: repare, de forma consciente, em três elementos — o som ambiente, a luz no espaço e as sensações no corpo. Ao fazê-lo, protege a memória auditiva e emocional que costuma ser sacrificada quando estamos focados no enquadramento (Barasch et al., 2017). No final, faça uma limpeza no próprio dia: mantenha dois ou três registos que contem a história e apague o resto. Se publicar, acrescente contexto (“o que senti”, “o que aprendi”), em vez do proverbial “estive aqui”. A intenção de partilhar pode diminuir a fruição se for o foco principal, por isso é útil recentrar a partilha na experiência e no significado (Barasch, Zauberman, & Diehl, 2018).

Em contexto profissional — eventos corporativos, conferências —, vale a pena combinar um responsável pela cobertura visual e libertar os restantes para estarem presentes, tomando notas breves quando necessário. Se precisa de provas de ativação, opte por dois ou três registos-chave (entrada, momento alto, encerramento) em vez de gravações contínuas que ninguém reverá. Em todos os casos, respeite sinalética e políticas dos espaços; muitas salas têm regras próprias quanto a gravações longas.

No fim, o objetivo não é abdicar de memórias digitais, mas recuperar o comando: usar o registo como ferramenta e não como filtro permanente. Da próxima vez que sentir o impulso de filmar “só mais um bocadinho”, experimente notar essa vontade, escolher um único instante para registar… e voltar para a vida que está a acontecer.

Finalizamos com uma citação do fotógrafo imortal Henri Cartier-Bresson: “Fotografar é colocar na mesma linha a cabeça, o olho e o coração”.


Referências

  • Barasch, A., Diehl, K., Silverman, J., & Zauberman, G. (2017). Photographic memory: The effects of volitional photo-taking on memory for visual and auditory aspects of an experience. Psychological Science, 28(8), 1056–1066. https://doi.org/10.1177/0956797617694868

  • Barasch, A., Zauberman, G., & Diehl, K. (2018). How the intention to share can undermine enjoyment: Photo-taking goals and evaluation of experiences. Journal of Consumer Research, 44(6), 1220–1237. (preprint OA em SSRN). https://doi.org/10.2139/ssrn.3113448

  • Borges, I., Patrão, I., Leal, I., & Costa, R. M. (2022). Correlates of online dependence during the COVID-19 pandemic. Psicologia, Saúde & Doenças, 23(1), 14–21. https://doi.org/10.15309/22psd230102

  • Centro Internet Segura. (2019, 2022). Dependências online – Orientações para a gestão saudável dos comportamentos online (ed. 2019 e atualização 2022). Fundação para a Ciência e a Tecnologia. (PDF OA)

  • Comissão Nacional de Proteção de Dados. (s.d.). Consentimento (RGPD). https://www.cnpd.pt (página OA)

  • Diehl, K., Zauberman, G., & Barasch, A. (2016). How taking photos increases enjoyment of experiences. Journal of Personality and Social Psychology, 111(2), 119–140. https://doi.org/10.1037/pspa0000055

  • Henkel, L. A. (2014). Point-and-shoot memories: The influence of taking photos on memory for a museum tour. Psychological Science, 25(2), 396–402. https://doi.org/10.1177/0956797613504438

  • Lei n.º 58/2019, de 8 de agosto. (2019). Assegura a execução do RGPD em Portugal. Diário da República. (texto OA)

  • Ophir, E., Nass, C., & Wagner, A. D. (2009). Cognitive control in media multitaskers. Proceedings of the National Academy of Sciences, 106(37), 15583–15587. https://doi.org/10.1073/pnas.0903620106

  • Ordem dos Psicólogos Portugueses. (2024, maio). Vamos falar sobre ecrãs e tecnologias digitais. OPP. (PDF OA)

  • Ponte, C., & Batista, S. (2019). EU Kids Online Portugal: Usos, competências, riscos e mediações da internet reportados por crianças e jovens (9–17 anos). EU Kids Online & NOVA FCSH. (PDF OA)

  • Przybylski, A. K., Murayama, K., DeHaan, C. R., & Gladwell, V. (2013). Motivational, emotional, and behavioral correlates of fear of missing out. Computers in Human Behavior, 29(4), 1841–1848. https://doi.org/10.1016/j.chb.2013.02.014

  • Sherman, L. E., Payton, A. A., Hernandez, L. M., Greenfield, P. M., & Dapretto, M. (2016). The power of the like in adolescence: Effects of peer influence on neural and behavioral responses to social media. Psychological Science, 27(7), 1027–1035. https://doi.org/10.1177/0956797616645673

  • Sparrow, B., Liu, J., & Wegner, D. M. (2011). Google effects on memory: Cognitive consequences of having information at our fingertips. Science, 333(6043), 776–778. https://doi.org/10.1126/science.1207745



 
 
 

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